* pequena nota: esse filme da foto é de 1965 e conta a história de um homem que sequestra uma mulher e a mantém refém só pelo prazer de saber que ela está lá. A capa é uma mórbida semelhança com Hannibal, mas tudo faz sentido, é só procurar - canibais, vampiros, zumbis.
Era uma vez um moço muito simpático, expansivo e gentil. Pelo menos assim parecia. Segundo ele mesmo, ele era muito inteligente, culto, abastado, conhecia as pessoas certas, havia tido sempre do melhor e tudo o que ele dizia era certo e verdadeiro. E como assim era, ninguém contestava. Ele tinha muitas, muitas coisas. Propriedades, era muito viajado e alguns itens possuía às centenas ou milhares. Por exemplo, cerca de dez mil filmes. Centenas de peças de roupas e calçados de todos os tipos. Cristais finíssimos em grande quantidade. Enxovais maravilhosos e todos os tipos de utensílios domésticos os mais modernos e as novidades todas em eletrônicos. Andou espalhando TVs por suas casas todas porque duas no mesmo cômodo não tinha graça. Livros, os clássicos, as novidades, tudo. Bebidas então nem se fala. E nesse quesito não economizava. Aliás, em nenhum.
Mas havia uma peculiaridade. Com tantas coisas maravilhosas e sem conseguir parar de comprar - quiçá porque sempre cabe mais alguma coisa no vazio - pouquíssimas coisas eram de fato usadas. Caixas se empilhavam guardando equipamentos novos. Quanto tempo seria necessário para assistir dez mil filmes? As taças empoeiravam nos armários, e formas e panelas antigas eram usadas enquanto as chiquérrimas (aliás nem mencionei que ele era ótimo cozinheiro também) ficavam guardadas lá em cima fora de alcance. Vestia-se quase sempre igual, com centenas de jeans no armário só um via a luz do dia. As bebidas - beber pra quê? Algumas comprara somente "para ter", assim, só para saber que tem, está lá à disposição. E além disso colecionava miudezas - isqueiros, posters, enfim, de tudo um pouco. E uma despensa sempre cheia, ainda que muitas coisas já começavam a embolorar.
De tanto saber tudo, ter tudo e ser o melhor em tudo, decidiu que poderia colecionar também pessoas. É, isso mesmo, pessoas, gente, seres humanos, especialmente mulheres. Chegava a gabar-se das quantidades semelhantes às dos outros itens que colecionava, tinha listas de números de telefone nas orelhas de livros, um pândego. Seu maior orgulho era essa coleção, porque, afinal, além de todo o mais, era lindo, interessante, gostoso, rico, enfim, tudo de bom. E tratava a coleção de gente de maneira um pouco inversa das outras: usava e não guardava, diferentemente dos itens que eram guardados sem serem usados.
Era uma vez uma moça que conviveu muito tempo com esse moço, fez parte da coleção dele mas ele extraordinariamente e sabe-se lá por qual motivo, porque vivia dizendo que ela não servia, entre outras amenidades, mas ele resolveu mantê-la e expô-la ao lado das outras coleções. A moça não concordou com algumas definições que ele tinha dele mesmo e perdeu-se dos outros itens. Como bom colecionador, o moço não gostava de perder itens de suas coleções, e por um longo tempo conseguiu usar a moça sem no entanto incorporá-la de volta ao pavilhão principal de exposição. A moça era muito tonta e foi-se deixando levar, com um pé dentro e outro fora do display.
Aí um dia essa história toda aí de coleção caiu na cabeça da moça como uma bigorna, e ela não foi beijada pelo príncipe mas acordou. Desejou boa sorte ao moço, juntou os colecionáveis dele que haviam insidiosamente sido instalados em sua casa, e botou o moço e suas malas na rua debaixo de um temporal.
Hoje ela está chorando muito e tem boas, maravilhosas lembranças do moço, porque ninguém é totalmente imbecil, só que acabou paciência. Um dia as lágrimas secam, as peças de coleção enferrujam, quebram, secam, ficam obsoletas, desbotam, murcham, mas os olhos que choraram as lágrimas acabam encontrando um artigo raro que não faz parte de nenhuna coleção, e aí... na curva do rio o cadáver passa.