sexta-feira, 22 de julho de 2016
O coração da minha cozinha
Diz-se por aí que cozinhar é um ato de amor. Isso é lindo, mas pergunte a quem cozinha todos os dias para alimentar a si mesmo ou à família, o amor vai se dissipando, especialmente na pressa, na falta de opção, no comer em pé na cozinha, sair com uma banana na mão para não desmaiar de fome a caminho do trabalho. Eu admiro muito quem sabe e tem prazer nisso, acho bonito saber exatamente o que é "uma pitada", "um pouco mais", "___ a gosto". E os rituais na cozinha.
Eu não fui criada para saber cozinhar, Tenho a sorte de uma mãe que cozinhou para mim por muito mais tempo que o recomendado, a ponto de me acostumar mal para sempre. A isso junte-se a minha total incapacidade e falta de vontade de aprender, aí está o resultado: para mim, cozinhar não é só um ato de amor, é um ato de amor profundo, daqueles de total desapego, se me virem na cozinha, saibam que tem muito amor envolvido.
Eu fui casada durante quase quinze anos, e só entrei na cozinha para cozinhar para minha filha. Como eu fazia? Quem cozinha em casa se surpreenderia com os infinitos modos existentes de driblar o fogão. Quando minha filha nasceu eu já tinha 31 anos, e aí é que fui aprender o básico da cozinha (não é fritar ovo, porque isso não sei até hoje). Aprendi a fazer as sopinhas (hoje já não sei mais), a comidinha, enfim, amor de mãe.
Quando depois dos 40 fiquei sozinha pela primeira vez, separada, filha morando longe para estudar, aí então foi ladeira abaixo. Quem mora sozinho sabe que só come se cozinhar, minha filha aprendeu isso rapidamente, a mãe continua enrolando, especialmente porque por sorte, atrai pessoas que cozinham.
No último domingo minha mãe ligou para mim e foi informada que eu estava na cozinha picando tomate, se poderia ligar depois. Quando liguei ela já estava preocupada se eu estava doente, mas já sabia que era de novo o amor. Nessa hora some a preguiça, a falta de vontade, porém, a inépcia, a mão desastrada, o nojinho, tudo isso está lá, mas não contam muito. Os olhos vão da faca para o copo e do fogo para os olhos, se eu fizer sozinha não é a mesma coisa (como aliás muitas outras coisas).
Tenho muitas pessoas que já cozinharam para mim. Suzi é a mãe por excelência, que põe amor em tudo, a cozinha dela exala coraçõezinhos. Fal e Marli com seus patezinhos e café, cujo sabor não existe em nenhum outro lugar. Esther, que em dias inesquecíveis e com mãos amorosas extras, proporcionou um evento divisor de águas para várias de nós, Claudia e Marion, com gêmeos bebês e cozinhando para me receber. Fernanda, de apartamento novo e cozinha já com amor embutido, Luci, minha companheira de jornada, a 100 quilômetros, se bobear ela cozinha até na minha cozinha. A Moniquinha, cujos bolos eu só vi em foto, mas tenho certeza que têm sabor amor. Ira e Michelangelo, que me receberam com todo amor do mundo, ela que é como eu, só cozinha em casos graves de amor, e ele com o melhor café napolitano que eu já tomei e jamais tomarei outro igual. Alline e Alberto, que me ofereceram o sabor da Itália temperado com bambinas, o café do Antonio e da Dri, sempre rodeado de sabedoria, minhas tias, minha avó que faz tanta falta com o café e bolinho de chuva, a comidinha da minha bisavó quando eu tinha 8, 9 anos, e tantos, tantos outros, que não esqueço, e obviamente, hors concours, a comida da minha mãe, aquela pela qual eu anseio quando volto de viagem, a que tem gosto de casa.
Eu não sou essa mãe, mas estou em paz com isso, reservo a cozinha para surtos de amor. E falando nisso, há pouco mais de dois anos, em uma viagem em que tomei um rumo diferente da minha companhia, eu estava sentada na Gare de lést em Paris, ele me deixou com as malas a caminho de Bruxelas, onde aliás Ira e Michelangelo já me esperavam com a mesa cheia de amor, e tomou o rumo do aeroporto. Eu fiquei lá, sentada, esperando o trem com as malas, uma sacolinha e um sentimento que vai me acompanhar para o resto da vida quando abri a sacolinha. Aí escrevi o seguinte:
"Então eu abro a sacolinha. Lá dentro, maçã, banana, água. E um lanchinho. Quando vou abrir o lanchinho, ele vem preparado e embalado como se fosse coisa de mãe. Mas não foi minha mãe quem fez. No entanto, as provas de amor não escolhem hora nem vestimenta. Eu como pão com lágrimas."
Demorei muito, depois disso, para internalizar essa descoberta. Mas, acabei na cozinha.
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