sexta-feira, 29 de julho de 2016

7 X 1 DE NOVO

Publicado no PRIMEIRA FONTE




Minha amiga conterrânea na civilização, a Isa, está se bandeando para os lados de Cabo Verde, mais especificamente em Boa Vista, a ilha chique de turistas. Há dois anos, eu estive em Praia, que é a capital, outra entre as 10 ilhas que formam o arquipélago que é um país. A ida da Isa para Cabo Verde me lembrou de um textãaaaaaaaao que escrevi na época, quem tiver tempo me acompanhe.
“Cabo Verde era até hoje em meu arquivo mental uma referência vaga de África e meio caminho para os navegantes portugueses.
Eu não tinha nem certeza se a língua era o português ainda.
Ao chegar e ao longo da breve visita, o prazer de ver uma nação em nascimento.
Sim, fala-se português, e outra surpresa - um português mais semelhante ao som do brasileiro que ao da mãe de todas as colônias.
Do porto caminha-se até Praia, o óbvio ainda está na toponímia, os lugares principais são Praia e Cidade Velha, além de lugarejos com os previsíveis nomes de santos católicos, religião que também aqui além-mar vem perdendo fiéis para a evangélica.
O povo já não é tão negro, aqui também já não se vê tanto a linda cor negra pura, como no Brasil, os colonizadores, saqueadores e visitantes também já deixaram sua marca genética.
Praia é onde se negocia e se vive, o “centro” da cidade-país-ilha. Há pouco a ver, e uma polícia vigilante, educada e preparada para receber turistas e agradá-los.
De lado, dentro do táxi cujo proprietário aparentemente esfolou um gorila e usa sua pele de pelos longos como revestimento do painel do carro, a primeira parada é o Forte.
No Forte, a bilheteria parece uma banca de pastel de feira de São Paulo, só um pouco menos sofisticada. E a segunda grata surpresa, o guia, que durante a visita ao Forte, do qual em pé efetivamente restam somente as muralhas e a cisterna, vai contando a história de seu país.
Cabo Verde é um arquipélago de dez ilhas, devidamente representadas por estrelas na bandeira que tem ainda o azul do mar, do céu, uma faixa vermelha representando liberdade, e branca representando paz. A bandeira tremula - um pouco trôpega ainda - no alto do Forte.

Do alto se vê as plantações que ainda não justificam o nome do país. No caminho todo e de lá de cima, só se vê uma paisagem desértica de terra seca. No entanto, de julho a setembro é que o nome do lugar se explica - é verde por ter verde mesmo, e onde hoje só se vê terra e pedras (ironia - a ilha não tem areia, a areia para construção tem de ser importada, estava sendo descarregada no porto), depois da chuva é verde a perder de vista. Animais só se vê os bodes, que vão atrás da pastagem montanha acima, porém, segundo informações, come-se também muito frango e porco, mas pouca carne de vaca.
Já houve um rio na ilha, que em meados dos anos 60 simplesmente foi-se - secou, desvaneceu-se no ar. Hoje toda a água que abastece a ilha passa pelo dessalinizador. E há moinhos de vento, providenciais, para um povo ainda quixotescamente ingênuo, preparando uma cidade nova que começa - nada ingenuamente neste caso - pela escola. Lá está ela no platô, e ao redor dela virá a cidade das próximas gerações, que começaram bem.
A vista de dentro do forte que se debruça sobre o mar e já conteve piratas saqueadores, inclusive Drake, nos idos dos anos de “descoberta” do Brasil (descobrimento me parece inadequado), é de tirar o fôlego. A cidade velha logo abaixo até que resistiu bem às pilhagens.
Cabo Verde libertou-se apenas em 1975, é um país-bebê, e separou-se de Guiné-Bissau em 1980, motivo de orgulho dos nativos, que contam que em Cabo Verde todos trabalham, inclusive, as mulheres são as que têm a vida produtiva mais marcante. Que novidade, as mulheres arregaçam as mangas e fazem o que tem que ser feito. A versão caboverdiana é que Guiné Bissau atrasava a vida deles porque lá todo mundo tem preguiça de trabalhar. Eu pessoalmente adoraria exportar para lá um determinado governante que seria perfeito para eles caso isso seja verdade.
Ver a cidade velha, as ruínas do forte, um cabo que liga continentes e serviu de parada para os grandes navegantes, saqueada, pilhada, mercado de escravos - os navios vinham com pedra calcária de lastro, que era deixada na ilha para as construções (a local, só vulcânica), e levavam escravos como lastro, um povo sofrido, porém já nascendo com orgulho da terra, é assistir o parto de uma nação.
Foi tão gratificante ver os primórdios, e saber que só as próximas gerações verão o desenvolvimento. Conflitos virão com certeza, governantes errarão, sangue ainda será derramado, sem isso não se constrói cidades, países.
Melhor de tudo foi ver que já há uma grande Universidade - Jean Piaget - um caminho interessante; e começar a cidade nova com uma escola, caldeirão de influências dos tantos que passaram, a língua local criolla talvez com o tempo se perca, mas é deliciosa de se ouvir. Para ela devem ter contribuído os de passagem - ingleses, franceses, espanhóis, e os óbvios portugueses. Outra descoberta interessante. As colônias de Portugal aparentemente dão a cor local ao português. A última flor do Lácio ainda espalha mudas que vão se aclimatando ao lugar onde se instalam, vão tomando ares locais, sem no entanto fugirem do tronco inicial. A unificação ortográfica é por enquanto ainda uma piada.
Não se doma uma língua por decreto.
Não se escraviza mentes.
A completa submissão muitas vezes é a forma mais sublime de rebeldia.” (23/04/2014)
Emocionei tanto que hoje nem quero acrescentar mais nada. A próxima geração que conte o que viu.

2 comentários:

Isa disse...

Maravilhoso texto, adorei.

flordelis disse...

Obrigada, querida, suas contribuições ainda vão render outro.