In water one sees one's own face;But in wine one beholds the heart of another.
~ French proverb
“Tão diferentes como água e vinho.” Em algumas ocasiões a
expressão cai muito bem. Às vezes temos filhos que apesar de criados do mesmo
modo ouvem isso o tempo todo. Ou amigos diferentes que complementam nossa vida
atendendo nossas necessidades todas. Mas tenho refletido mais a fundo sobre
água e vinho porque venho de uma escolha recente, e de tão díspares, as opções
se encaixam perfeitamente.
Um começou como vinho. Forte, encorpado, inebriante. Tão
inebriante que beber desse vinho trouxe todas as dores e as delícias do álcool.
Da sensação agradável do comedimento até o horror da ressaca, passando por
gargalhadas exageradas e lágrimas amargas. Poderia até dizer que virou vício, e
que me causou uma cirrose de coração. Mas era o vinho na imaturidade, o vinho
de quem não sabia ainda beber sem ter os efeitos indesejados, coisa que só se
aprende com o tempo. O tempo foi longo, longo demais para não deixar seqüelas.
Quando o vinho começou a diluir e ficar mais ameno ainda doía, porque a cirrose
cardíaca foi forte demais. Tantas, tantas vezes estive no AA cuja sede é dentro
da minha cabeça, mas como todo vício, ia e vinha.
Numa dessas idas, apareceu a água. Entrou como toda água,
primeiro gotejando, depois um fio fino, depois uma corrente fraca, e assim foi
indo até virar inundação. A água é a fonte de tudo, mas é tão sem graça, como
pode se comparar ao vinho, com sabor, sensações, vício? Só que determinadas
águas são nobres. E de sem graça a água começa a ter sabor, cor, e as águas
nobres têm aquele quê de principesco, devem ser as águas que correm no Olimpo.
A água não muda como o vinho, mas nem por isso o tempo deixa de influenciar –
de gotejamento a inundação podem ser meses – ou minutos. O fato é que – se
existe a brecha – a água penetra e toma conta de tudo, e muitas vezes só se
nota quando vem a inundação e não há mais nada a fazer.
A água é fonte de tudo e sem ela não se vive. O vinho é o
néctar dos deuses, tempero da vida. Cachoeira, fonte, rio, riacho, chuva forte,
garoa, bica, catarata, córrego, mar. Uva, sol, terra, suor, garrafa, taça, o
som da rolha saindo e do vinho derramando na taça, o sabor, a sensação, in vino
veritas. O vinho necessita da água para nascer. A água acompanha o vinho. Um
banho revigorante, uma taça relaxante, às vezes precisamos de um, às vezes de
outro.
A água não para nunca, vem e volta do céu infinitamente. O
vinho envelhece e melhora, mas se não for tomado o devido cuidado, perde o
viço, o corpo, o sabor, vira vinagre. As coisas mudam.
Água não vira vinho e vinho não vira água. Ou pode
acontecer.
Às vezes impõe-se a escolha. Obviamente sem água não se
vive, não dá pra escolher ficar sem água. E dá para ficar sem vinho. Mas quem
quer?
E o vinho que era tão arrebatador com o tempo foi perdendo o
viço, de tanto embebedar acabou exacerbando e exaurindo. A água, calma mas
decidida, foi tomando espaço e acabou alçada ao status de vinho, de tantas uvas
que foram se imiscuindo no processo.
Vive-se de vinho? Não sei. Quase arrisquei. Mas a água
pareceu mais segura, já foi vinho, quem sabe um dia volta a inebriar? E o
vinho, de terras distantes, vai continuar sendo o néctar dos deuses, aquele,
inalcançável. Só que acessível se a vontade imperar. É uma pena que água e
vinho se misturem. Se ficassem separados seria possível desfrutar do melhor dos
dois. Mas, de novo, tudo muda. A próxima mudança nem Baco sabe como e quando
será.