sexta-feira, 10 de julho de 2015

na soleira



Saudade é inútil, inexorável às vezes, inconveniente sempre.

Olhar para trás com esses olhos sem lágrimas ainda vai acabar te matando. Agora que elas minguaram até quase a extinção, é onde começa o perigo abissal, o perigo do superado. Superar é bem melhor definido em inglês - a gente passa por cima. O que não significa que tirou do caminho, apenas got over it e deixou "it" lá. Mas it tem pernas, tentáculos, emite ondas, é fosforescente, tem um apelo irresistível de canto de sereia, e a saudade é Pavlov, toca a campainha
.

O armário esteve bagunçado por tanto tempo que mesmo depois da arrumação não se nota o que ficou lá no fundo. E em geral acabamos tirando o que um dia seria útil - as más lembranças. Querendo acabar com elas para diminuir a dor, você enfia todas no saco de lixo e manda embora. Ficam as boas, essa sina.  São elas que vão se esvaindo, até revelarem os esqueletos que se abrigam lá dentro.

E eles pulam na gente do nada. Você ouve uma música, sente um cheiro, dirige sem querer para um lugar, vê uma fotografia que estava perdida nos arquivos inúteis, ouve alguma coisa, ato falho, e puft - um esqueleto pendurado no pescoço. E aí você o arrasta por dias, leva passear, alimenta, dorme segurando a mão dele (quando ele te deixa dormir), conversa com ele, até ficar com ódio mortal dele e enfiar dentro do armário de novo, lá com os outros, que já estão bem confortáveis.

Por isso não responda, não atenda nada que toque, não abra a porta. Você sabe que se abrir e tiver um esqueleto lá você vai encostar a cabeça na porta e ficar em pé na soleira, e quando encontrar as órbitas dos olhos dele todo universo vai saltar de lá, esse momento infernal do reconhecimento e da cumplicidade restabelecida. E aí, it's over.