quarta-feira, 28 de abril de 2010



"Circe, Circe, how dare you tell me to treat you with any warmth? You who turned my men to swine in your house and now you hold me here as well - teeming with treachery you lure me to your room to mount your bed, so once I lie there naked you'll unman me, strip away my courage! Mount your bed? Not for all the world. Not until you consent to swear, goddess, a binding oath you'll never plot some new intrigue to harm me!"
[Ah, claro, se ela prometer tudo bem.]

Ter referências. Demoramos muitos anos para construir um acervo cultural individual, leituras que fazemos por obrigação, coisas que vemos porque são esfregadas na cara da gente, coisas que estudamos porque temos que. E obviamente tem as que escolhemos e essas acabam determinando o que nos tornamos. Os arquétipos sempre me fascinaram, vejo-os como matrizes, como se fossem formas de fazer personalidade, moldes de pessoas, e é interessante que até fisicamente, costumamos grudar rótulos nas pessoas até pela aparência, e algumas referências estão tão internalizadas, tão integradas ao imaginário coletivo, que mesmo os que têm menos acesso – seja por falta de oportunidade ou de vontade – usam. Bom é ter consciência, porque torna a vida muito mais rica, mas também tem seu lado obscuro. Hoje não consigo mais pensar simplesmente no que é pelo que é, minhas referências vão aparecendo como se eu estivesse fazendo um download, saber não tem mesmo volta, não existe des-saber, o que é lastimável, porque seria muito útil. Mas os arquétipos. Não tenho a menor pretensão de discutir isso, por falta absoluta de competência e extensão limitada de conhecimento, eu só fico na superfície mesmo e aplico o que me interessa. Andei pensando sobre Ulisses, Circe e Penélope. Na verdade a princípio pensei em todas as mulheres da vida de Ulisses, tão diferentes, deusas, ninfas, feiticeiras, e a mulher com quem ele se casou. Não é à toa que ainda existem as mulheres “para casar”. A mitologia, a religião, o Estado, tudo o que enfia coisas nas cabeças mais desavisadas – e nas nem tão desavisadas mas distraídas – pregam coisas do tipo desde sempre. O que me leva a pensar se tivéssemos realmente liberdade de pensamento sem influências externas de qualquer tipo, que espécie de mundo construiríamos? Sem referências, só o que sai de dentro da cabeça de cada um? Bom, já viajei, isso não vai mesmo nunca ser possível, voltando às mulheres do Ulisses. Toda mulher tem um pouco de cada uma, mas Circe e Penélope são dois opostos que vivemos ao mesmo tempo muitas vezes sem perceber, porque seria óbvio que as duas não podem estar presentes ao mesmo tempo. E se eu soubesse um pouco de psicologia, arriscaria dizer que o único amor perfeito do homem é a mãe, a mulher que não é a mãe é a prostituta, e ele tem que se casar com aquela que se assemelha ao máximo à sua mãe, e seu objetivo final é transformá-la em mãe também, e zás – tédio mortal. Mas eu não sei nada de psicologia e isso é tudo chute. Eu gosto mesmo é da Circe. Algumas vezes – muitas – fui e ainda sou Penélope, acho lindo, tecer e des-tecer, esperar pelo amado à beira do mar olhando o horizonte – mas, como assim? DEZ anos? Quem espera dez anos alguém que está brincando de outra coisa? É linda a idéia, o “conceito”. Mas, né. A Circe se diverte muito mais. Ela transforma homens em porcos! Ela tem a taça do néctar irresistível (ainda que o chato do herói a recuse)! São escolhas, e saber que elas existem dá a oportunidade de fazê-las, acho que este é o ponto, mas não sei nada da formação do imaginário da sociedade ocidental civilizada. Eu só quero mesmo é me divertir. E afinal, a escolha mais interessante ainda é não fazer a escolha, é ficar com elas todas, Penélope, Circe, as sereias, Calipso, porque todas elas moram em nós, todas nos tiram do vazio dos dias que são áridos, e nos situam nos olimpos de viver.

terça-feira, 27 de abril de 2010



A música é antiga, muito. E eu já estive aqui. Hoje pus o primeiro pé em um lugar onde eu já estive algumas vezes, onde já foi escuro, radiante, difícil de sair depois. O lugar é bem familiar, e assistir de fora o entrar nele de novo é inédito, é emocionante, mas extremamente assustador. Porque eu sei aonde estou indo. É um lugar mutável, às vezes caverna, às vezes oásis, abismal, por vezes parece um lugar fechado sem janelas onde as paredes se fecham ou a água vai subindo e me afogando; outras é plácido, é a tranquilidade, é onde eu sempre quis estar, e outras ainda é de onde eu mais quero sair. E eu sabia que a porta ia acabar se abrindo, aliás, eu tenho estado há muito tempo à beira, na soleira, no fio da navalha, no quase, sem coragem de entrar, mas agora que pus o primeiro pé, o vórtice é irresistível.

sábado, 24 de abril de 2010

Perspectivas



Algumas pessoas são assim. Mas de maneiras diferentes. Para algumas realmente só tem água. Provavelmente nem o coqueiro notam. Ahn? é o que mais se ouve delas. Outras até sabem que deve ter alguma coisa a mais, não é possível. Esse tipo se desdobra, umas sabem que tem, mas não têm a menor idéia de onde está. As outras também sabem que tem, mas não querem procurar, porque podem encontrar. Mas uma pena são aquelas que sabem que tem, querem procurar, sabem que vão encontrar, mas estão assustadas demais para finalmente pular e ver a água toda de uma perspectiva diferente - de dentro.

* mais aqui: http://xkcd.com/

sexta-feira, 23 de abril de 2010

I have, and you, for god's sake?



Eu tenho que perguntar. Será que fui só eu que vi? E será que vou ter sempre que perguntar? Eu não podia deixar assim, molhado, mas fingindo que não tinha visto? E antes desta tempestade nem vem a calmaria, eu não vejo a calmaria há tanto, tanto tempo. Sim, eu já vi a chuva em dias com sol, sem sol, com vento, com raios e trovões, ela não me incomoda. O que me incomoda é que chove e, apesar de encharcadas até os ossos, algumas pessoas piscam seus olhos coloridos e continuam me arrastando na correnteza como se fosse um passeio de barco por um canal que passa no meio da cidade. E eu também fico pensando se um dia vai ser possível parar.

quarta-feira, 21 de abril de 2010



Load the ship and set out. No one knows for certain whether the vessel will sink or reach the harbor. Cautious people say, "I'll do nothing until I can be sure". Merchants know better. If you do nothing, you lose. Don't be one of those merchants who won't risk the ocean. - Rumi


O meu navio está sempre carregado e em alto mar. Por mais difícil que seja, eu sou sempre a parte fácil, independentemente do que se trate ou de controvérsias a respeito. Eu relevo, considero, dialogo comigo, me dou argumentos para tentar compreender os motivos, e mesmo que não os ache, ainda assim, contra o óbvio, eu vou navegando. E as coisas vão vindo - desde seasickness até tempestades que ameaçam virar o navio, mas ele vai resistindo. E no entanto meu navio está tão desgastado. Eu estou tão cansada de segurar as velas à unha, de lutar contra a ventania, ou pior, contra a calmaria - esta é a que mais me consome. As tormentas acabo superando, mas as calmarias, pela sua própria natureza, não me deixam fazer nada. E o fato de ir em frente não depender da minha vontade me tira as esperanças de que a melhor decisão é mesmo pôr o navio no mar. Talvez fosse mais fácil e menos doloroso deixar no porto mesmo. Mas. Depois que se sente o gosto de sair para navegar, ainda que sabendo-se dos perigos, ficar no porto não é mais opção. Na verdade para mim nunca existiu essa possibilidade, apesar de eu ter ficado anos atracada, meu olhar sempre esteve além, lá onde só se vê água e céu. E nunca sei direito para onde estou indo, as mudanças de rota têm sido tão frequentes. Apesar dos percalços, dos tubarões que eu mato todos os dias, do cansaço de ser sempre eu a ter o leme na mão, minha escolha já foi feita há muito tempo. Cumpra-se.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Ausências



Não sabia porquê queria escrever mas me faltavam as palavras, agora sei que o que falta não são as palavras, o que falta é aquele algo a mais por trás delas, eu tenho visto tanta coisa, sentido, vivido tantas coisas, novas, diferentes e boas, mas aquele velho sentimento que ficou sem endereço - ou a ausência dele - abre um buraco que me cala, come as minhas palavras, atropela a concatenação das minhas ideias, seca a minha veia dramática, fagocita os meus pensamentos. Não é de todo ruim, porque no auge tudo fica mais intenso, as cores mais fortes, os olhos brilham. Mas há momentos em que eu queria voltar a sentir mais profundamente, algumas camadas abaixo da epiderme, naquele lugar que eu busco nos momentos que mais se assemelham ao caminho que me leva aonde eu já estive. Mas os caminhos ficaram tão acidentados, a jornada tão longa e sem descanso, a água escassa, que acabei pegando um atalho, sem Ariadne pra me ajudar a voltar. E o lugar foge de mim. Mas só quero procurar o caminho de novo se desta vez estiver ensolarado.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Por favor?



Quando se fala do clima em mais de uma frase, está tudo perdido.
Não transforme o clima em assunto. Não me pergunte tudo bem? Não me diga que é uma pessoa simples, descomplicada e que gosta tanto de frio como de calor, como se isso fosse uma vantagem. Simples? Sabe o que é isso? Eu sei o que é. Você fica na superfície, vive a sua vida “como ela deve ser vivida”, em geral as pessoas simples são as donas da verdade, dizem que “sabem viver”, ou seja, detêm o segredo de como se deve viver. O que em geral envolve o básico desde cedo, o roteiro é seguido à risca, nascer, crescer, reproduzir, e no meio, trabalhar, estudar, casar, matar alguém de tédio, e seguir buscando mais pessoas para continuar matando de tédio. A conversa não anda, o assunto clima ocupa umas cinco frases, depois vem o “como o tempo passou rápido, já estamos em [insira o mês aqui]”, ou “tenho trabalhado tanto”.
Meu Deus! Eu quero ouvir absurdos! Ou então não diga nada! Eu quero um labirinto intrincado de caminhos por onde eu tenha que correr arfando e de onde eu não queira nem sair. E que a sensação esteja presente por dias a fio, com o sol nem nascido ainda e o corpo já latejando, o ar faltando, e a sensação presente ali no background, servindo de combustível para que eu abstraia as conversas sobre o clima.

Obs.: Sim, é uma explosão nuclear na foto. É nesse nível mesmo.

terça-feira, 13 de abril de 2010

O outro lugar



Os dias vão ficando mais frios, o que é cíclico vai se revelando, eu vou observando o desenho da cidade que se altera, as crianças que crescem, as pessoas que vêm e vão, os livros, os filmes, as peças de teatro, a vida vai acontecendo neste nível de “real” em que vamos nos inserindo, recebo más notícias, corro atrás das soluções, resolvo o dia-a-dia, as coisas se deterioram, a administração doméstica, a manutenção dessa vida é trabalhosa.
Mas existe um outro lugar para onde vou em alguns momentos que não são nem milagrosos, nem especiais, nem decisivos, são até bem comuns, se estiver distraída nem percebo que mudei de lugar, mas quando estou lá eu sei. Eu sei porque o endereço é conhecido, determinados acontecimentos são o caminho para ele. Então quando há coisas no ar, já sei que estou embarcando.
Certas coisas, apesar de acontecerem nos mesmos lugares físicos onde vivemos todos os dias, com o mesmo ar que todos respiramos, as mesmas roupas que vestimos para fazer coisas bem pouco sublimes, parecem acontecer em dimensões paralelas. E como dizer o indizível? Qualquer coisa que se diga não traduz jamais o que de fato acontece, que é imaterial, e não se encaixa em nada que tenha nome.
E no entanto, aqui na superfície, continuo fazendo tudo que precisa ser feito, tudo que quero fazer e tudo o que faz parte de ser. Mas há esses momentos vividos nesse outro lugar que acompanham em segundo plano a minha existência. Eles ficam ali, sub-reptícios, secundários, background, subjacentes, como música de fundo. E são eles o real motivo porque suporto tudo o que carrego no “real”. São raros, estranhos, complicados, escorregadios, às vezes uma verdadeira armadilha. Tiram o fôlego e embaçam o rumo a tomar, não existem em outro lugar nem tempo que não seja neles mesmos. E por serem uma forma tão profunda de comunicação com outra pessoa, atestam a própria humanidade, que afinal, é isso mesmo, acho que nascemos para construir pontes para o outro. O material de que são feitas essas pontes é tão obscuro quanto o lugar onde seus alicerces são lançados. Mas a conexão é feita.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Eu não sei dançar



Eu entrei na dança, mas não sei dançar. Eu tenho uma ideia da cadência, mas não sei se há palavras na música. Eu não sei onde pôr os meus pés. Não sei onde é o limite para que eu dance sem pisar em outro pé que não é o meu. É uma dança sem instruções, os pezinhos não estão desenhados no chão para eu seguí-los e não tem professor. Não sei marcar o ritmo, não tenho ouvido musical, nem a minha coordenação motora é muito boa. Não sei onde acaba o meu território e onde começa o de quem está dançando comigo. Não sei mais onde está a linha demarcadora do meu território, aquela que supostamente não é para ser ultrapassada. Mas a vida é cheia de surpresas, boas e ruins. Não sei também qual será a próxima que terei. Então a música se torna irresistível aos meus ouvidos e eu vou dançando mesmo assim, sem saber a música, os passos ou os limites, a linha demarcadora, aquela, vai ficando cada vez mais tênue. E eu nem tenho mais medo.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quem?


"Out beyond ideas of wrongdoing and rightdoing,
there is a field. I will meet you there." Rumi


Será que alguém consegue chegar lá? Já propus tirar a máscara e os sapatos, quem será capaz de pisar na cabeça dos medos, desafiar os valores estabelecidos, as verdades impostas, anjos com aparência de demônios, o tédio, o mais ou menos, o pode ser, o quase, o ainda não, o hoje não, o preciso pensar, o "mas e se", as cicatrizes que se manifestam no tempo frio, soltar o peso que se arrasta, que se carrega e que se empurra; quem tem coragem de levantar a mão, olhar pela janela, abrir a porta bem escancarada, não só uma frestinha, sair de vermelho na rua, virar as costas e sair andando sem olhar pra trás, desligar o telefone, fechar a porta e devolver a chave, fechar a conta, pegar a mala e ir? Quem aceita a venda nos olhos, o pulo no abismo, abrir a caixa, entrar no labirinto, na floresta, no quarto escuro? Eu sei quem.

Blá, blá, blá



Algumas coisas não devem ser ditas, outras não podem ser ditas, outras não precisam ser ditas. Esta eu simplesmente não sei dizer. Sei que ela vem e logo, a expectativa é mansa, mesmo porque é preciso fôlego para depois da tempestade. E tenho dito.

sábado, 3 de abril de 2010



"Esse movimento ritual de conversa é muito diferente de um exercício mental de convencimento. É uma dança cujo passo principal é deixar seu próprio sapato e, gradativamente, calçar o sapato do outro. No entanto, para fazer isso é imprescindível pisar no chão descalço. O chão, esse que é sagrado, é o lugar intermediário onde nos despimos - descalçamos - de uma identidade pessoal e nos empossamos de uma identidade plena."
Nilton Bonder, in "Tirando os Sapatos"


Todas as manhãs eu acordo e vou pondo gradativamente as máscaras que vou usando ao longo do dia. Que vivemos mascarados é fato, assim como poucos têm consciência disso, e alguns se apegam de tal maneira ao que julgam ser sua verdadeira identidade que, se por um infortúnio essa máscara - que de tão constante amoldou-se ao rosto como se de fato fosse ele - cai, perdem-se totalmente de si mesmos como se sua própria identidade tivesse ruído.
Diferentes ocasiões, diferentes companhias, diferentes máscaras. Não é ruim, quando se sabe que elas são cambiáveis, destacáveis, e quando quem manda nelas somos nós, e não o contrário. Com algumas sinto-me mais à vontade que com outras, mas todas por fim me cansam. Ainda bem que ao final do dia relego-as ao lugar delas e reencontro a mim mesma, a sem máscara, que só eu sei quem é.
E não há solidão maior que essa - somos os únicos que vemos a nós mesmos sem as máscaras, o que muitas vezes é assustador, então esporadicamente durmo mascarada.
Mas eu queria poder, na conversa, tirar a máscara e os sapatos, pisar no solo neutro descalça e de cara limpa. Afinal o que estamos fazendo aqui e que sentido faz tudo se não for através do outro? Descalçar os sapatos sem necessariamente ter que calçar os do outro é desarmante, sem máscara, então, é apavorante. Será que existe alguém com quem eu vá conseguir conversar sem máscara, sem sapatos, sem armas, sem jogos, sem a necessidade da argumentação, do convencimento, só pelo prazer de não estar calçando sapatos nem usando máscara? Será que existe alguém capaz de enxergar essa nossa verdadeira identidade que aparentemente só nós conhecemos?
Existe alguém para quem eu possa dizer, tira os teus sapatos, a tua máscara, pisa neste chão cheio de identidade plena - não minha, não tua, apenas humana - e vem dançar (aqui não vai a pontuação, não consegui concluir se é uma pergunta ou uma afirmação. Mas sei que alguém está ouvindo a mesma música que eu)