terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Paradeiros


Para onde vão os amores quando mudam? Começar a amar é mais fácil, é só se distrair e pronto, está feito. O durante sabemos como é, agridoce, com momentos bons e ruins que variam de acordo com uma miríade de fatores que não dá nem pra querer começar a definir. Mas e depois que – quero evitar usar a palavra “acabam”, porque não sei se é isso que acontece – mudam? Vão para o céu dos cachorros? Para o mesmo lugar aonde vão as coisas que a gente perde e não acha nunca mais? O alfinete que cai no chão, a pulseira de estimação, o outro pé daquela meia, o par do brinco, a última peça do quebra-cabeça, a nossa inocência? Alguns é fácil de dizer para onde vão, porque a mágoa e o ressentimento são elefantes na sala. Alguns transmutam-se em coisas cheias de tentáculos que são batizadas com nomes diferentes como se fossem mutações cancerígenas, porque parecem de tudo, menos amor. Esses são os mais sofridos, porque vão sufocando, infiltrando, enrolando, tirando aos poucos a vida do outro, e ainda acham que é tudo justificável. Outros se perdem em oceanos de sutilezas, a água vai cobrindo devagar, subindo um milímetro por dia, e quando nos damos conta, o silêncio do afogamento – e o pior: nem nos debatemos, porque o cansaço é tanto, tão infinito, que queremos mais mesmo é que acabe logo. Existem aqueles que morrem de morte morrida mesmo, simplesmente esgotam-se, talvez por terem acontecido na hora errada, no lugar errado, ou porque de tão intensos, acabou o gás. Os piores, no entanto, são aqueles que mudaram sem que saibamos no quê. Fica a sensação de “para onde foi aquilo que eu estava sentindo”. E daí dizemos “é uma pena”, uma lagriminha furtiva escorre, ficamos sem graça, e tentamos acreditar que foi realmente para algum outro lugar, para onde, se tivermos sorte, os vôos de hoje estão lotados.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Los Abrazos Rotos


Já faz quase uma semana que fui assistir, mas ainda estava processando. Queria mesmo era saber por quê as almodovaridades me tocam tanto. De novo o drama. Será que a vida tem que ter as tintas carregadas? Maquiagem borrada, o traço preto do rímel escorrendo, traição, vingança, morte, cegueira? E mais uma vez pensando na traição, Lena traiu? Traiu quem? (E Capitu?) Certamente não traiu a si mesma, ou talvez o tenha feito, quando cedeu a Ernesto pela primeira vez. O que mostra que não se trai a alma impunemente. E ainda que se mude de nome, não se engana a alma, ela enxerga mesmo através da cegueira. E edita filmes, que ficam para sempre.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Almas

“Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Este olhar é o da alma.” – Nilton Bonder, in A Alma Imoral



A todas as almas que já descobriram que a obediência e o respeito eram devidos até o ponto em que não sabíamos que tínhamos escolha. A todas as almas que escolheram os caminhos que acabaram se revelando intermináveis, independente da quilometragem prevista no primeiro passo. Às almas cujos copos estiveram sempre cheios, demasiado cheios, nunca pela metade, sempre transbordantes. Às almas cheias de drama, desastre, descarrilamento de trens, desmaios, fogo, inundação, catástrofe; fogos de artifício. A todas as almas que descobriram a tempo o torpor, a mesmice, o socialmente correto, o moralmente aceitável, e saíram correndo para o outro lado. Às almas irresponsáveis, inconsequentes, impacientes, indomáveis, insuportáveis. Às almas que soltaram as amarras, passaram dos limites, surtaram, dissociaram, descontrolaram. A todas que perderam o juízo, o pé, a cabeça, a razão, a memória, o prumo, o fôlego. E às que arriscaram, apostaram, pagaram pra ver, fecharam os olhos e pularam no precipício. Às almas rebeldes, intensas, inquietas, que não traem a si mesmas jamais, que no silêncio consigam manter-se fieis àquilo que supostamente deveria ser diferente.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Estes dias...



Porque tem dias que não há palavra que traduza o que vai dentro. E nesses dias seria bom que as memórias não fossem nossas mesmo.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Dores


As coisas doem. Todos temos nossas feridas, umas já fechadas, mas a cicatriz lá, lembrando, e outras, abertas, escancaradas para sempre, às vezes fingindo que fecharam somente para surgirem impávidas e sangrentas de novo. Mas sentimento tem nome e eu tenho a mania de querer dar nomes a todos, não sei pra quê, como se definir mudasse alguma coisa. Ódio doi muito porque é cansativo, odiar alguém desgasta, é como correr maratona pra chegar a lugar nenhum. Raiva é muito amarga, atinge o fígado na hora, e o gosto metálico logo vem para a boca. Traição não discuto porque tenho visões pouco ortodoxas a respeito do que é traição e pra quem. Impotência doi pela incredulidade de perceber que não há mais nada a fazer por mais que a dor se manifeste. Impaciência, pela ansiedade do que não chega ou vai embora nunca. Coração partido pela incredulidade, morte por todos os motivos que não conseguimos enumerar. Perdas também tivemos muitas, todo mundo já perdeu alguém querido, seja para outro alguém, para a morte, ou para a vida, e também já perdemos uma pulseira, dinheiro, a hora, um trem, ônibus ou avião, a vergonha, o medo, e muitos já tiveram a sorte de perder o juízo. Tudo isso doi muito ou pouco. Mas o que mais me doi agora é não ter nenhuma dessas dores para oferecer, todas elas se esgotaram, e a indiferença é a dor mais sofrida que eu não estou sentindo por alguém.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A dança, o drama e el toro


Ontem assisti a um espetáculo de dança que foi, literalmente, um espetáculo. A grande maioria dos bailarinos não era profissional, mas vejam só, não fez muita diferença. O moço da foto ao lado foi quem me convidou e quem muito me impressionou. Eu conhecia o outro lado dele, ele é professor de muitas coisas e já aprendi muita coisa do vasto, vastíssimo conhecimento transcendente dele. Mas a dança. Primeiro quero tentar descrever o impacto, o que é de cara infrutífero, porque descrever impacto soa ridículo, impacto se sente, não dá pra ser impactado por descrição. E eu já estou digressionando antes de começar. O espetáculo baseava-se em Frida Kahlo, foi uma abordagem muito interessante, mas o que interessa é o flamenco. O flamenco é visceral, esta deve ser a melhor definição. É daquelas coisas que quando se ouve muda o ritmo cardíaco. O coração parece que tenta acertar o ritmo com as batidas do sapateado. Mas não é só isso. O flamenco é também atuação, os pés dão o tom, as mãos e o rosto fazem o resto. E não posso então deixar de pensar em Almodóvar. O drama. O drama da dança até dói. Eu por acaso sabia que o bailarino passa por um drama pessoal, mas mesmo que não soubesse, bastava prestar um pouco de atenção. Ou mesmo que não passasse, expressaria o drama coletivo, aquele do qual todos nós bebemos na fonte, o drama que está disponível para o deleite de todos. O rosto dele se transfigura, de tal modo que uma amiga foi e me perguntou por que ele não dançou, mas como assim, então não fomos ao mesmo lugar? Fomos, mas ele estava irreconhecível. Algo se apossa e muda a expressão, os traços, a identidade. Quem se apossa de nós quando não estamos dançando? Por que precisamos do drama, do coração dilacerado, da sensação de traição, do peito rasgado de dor? E de preferência, que seja dor de amor. Talvez seja a busca eterna do que não vamos encontrar nunca, o drama é o pranto do impossível. Mas ele nos alimenta, e é importante que seja ele que nos alimente, e que nunca nos devore. Assim é permitido, assim faz parte da tessitura da vida, que se for vivida sem drama nenhum também não tem a mínima graça. E que venga el toro.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Nestes últimos dias tenho observado uma coisa interessantíssima, e acabei concluindo que as pessoas perdem a noção de tudo com facilidade. Eu ouço cada uma que me deixa perplexa, pessoas que vêem coisas onde elas não estão e vice-versa, quando as coisas estão berrando e mordendo e o maior interessado não vê; outras que acreditam em qualidades não existentes (aqui um desconto para mães, porque daí já é inerente) e as auto-depreciativas que não são raras também; atitudes sem o menor fundamento, e estou aqui falando do dia a dia, não da situação econômica, política e social mundial que não pretendo discutir, enfim, achei que o mundo estava cheio de gente louca. E está mesmo, mas vejam só, esse não era o motivo. Sem noção pra quem? Pra mim? E quem me pôs na posição de decidir o que é isso? Aí consegui dar mais um passo, ainda bem. Na verdade, é o conceito de normal ou não. O que é ser normal? Para quem? A minha normalidade é tão diferente da normalidade dos outros, então cada um tem a sua, e isso agora soa tão óbvio... Cada um vive lá dentro da sua cabeça, onde o mundo faz sentido, como é então o processo? Precisamos adaptar o que se passa lá ao que se passa aqui fora? Até onde? Até onde eu posso usar o meu "normal" sem ser um monstro social? Eu sei dos limites óbvios, a lei, a segurança, ok, mas e os outros que não são assim tão gritantes? E até onde eu posso me incomodar com as "normalidades" dos outros sem ter vontade de esbofeteá-los com todo respeito? Porque vou dizer, tenho ouvido coisa que até deus duvida.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009


Então, pra começar uma coisa bem digerível (com trocadilho). Fui assistir a Julie & Julia. E daí que a coisa toda de comida mexeu com a cabeça de todo mundo, basta ver a Fal
, onde se vê que o doutorado no assunto já foi obtido. Fui despretensiosamente, porque achava que comida era para mim um assunto já resolvido. Nunca cozinhei, minha mãe sempre cozinhou, nunca ensinou e nem eu me interessei em aprender. Fiquei casada quinze anos e sempre toureei o almoço e o jantar, e mesmo cozinhar para a filha sempre foi tarefa, nunca prazer. Mas aí, que saí do filme - 1) com fome; 2) com fome existencial. A primeira fome foi fácil de resolver, isso aqui é feito com Miojo, sanduíche, sopa de pacote, essas coisas da alta cozinha, e saudáveis. A outra fome ficou tentando ser digerida dias e dias, e um incidente acabou por resolver a questão. A questão, aliás, não era se eu deveria imediatamente me inscrever em um curso de culinária, mas sim, considerando-se que este era um assunto supostamente resolvido - ou seja, cozinhar não vou mesmo - por que eu fiquei com a sensação de estar perdendo alguma coisa? Sim, porque as pessoas todas parecem ter relações epifânicas ou orgásmicas com comida, tudo parece ser um evento, passar a receita, ir ao mercado, suar na frente do fogão... Acho o máximo, lindo mesmo de ver, mas não me passem a receita, porque na hora que começa o descritivo do modo de preparo eu já abstraí. Bem. A questão então era bem outra, ou seja, meu, devo estar perdendo alguma coisa, certo? Achei que podia passar pela vida sem passar pela cozinha, mas? E daí que, com ajuda, acabei concluindo que sim, que perco alguma coisa, mas todos nós perdemos algumas coisas, né? Então vou perder essa, e o incidente foi uma visita que recebi e que perguntou das funções na cozinha. Ahn? O que ser isso, cozinhar? E poderia ser executado por qualquer das partes. Mas o problema é que isso caracteriza outras coisas. Cozinhar faz parte de brincar de casinha. As meninas brincam de fazer comidinha. Dai acabei concluindo que de casinha eu não quero brincar não. Já fiz a minha parte. Nunca mais? Nunca mais e para sempre são tempos que não existem. Hoje não. Hoje me recuso a brincar de casinha. Amanhã, daqui a meia hora, ano que vem? Sei lá. Hoje quero brincar de outras coisas. E ainda bem que eu posso. E ainda bem que todo mundo pode. E ainda bem que podemos nos dar ao luxo de perder algumas coisas. E as outras que ganhamos que sejam bem aproveitadas.

Já tinha passado do tempo de finalmente começar isto aqui. As palavras exigem, elas querem sair, espero que não se acanhem agora que finalmente as portas se abriram para elas.