sexta-feira, 10 de julho de 2015

na soleira



Saudade é inútil, inexorável às vezes, inconveniente sempre.

Olhar para trás com esses olhos sem lágrimas ainda vai acabar te matando. Agora que elas minguaram até quase a extinção, é onde começa o perigo abissal, o perigo do superado. Superar é bem melhor definido em inglês - a gente passa por cima. O que não significa que tirou do caminho, apenas got over it e deixou "it" lá. Mas it tem pernas, tentáculos, emite ondas, é fosforescente, tem um apelo irresistível de canto de sereia, e a saudade é Pavlov, toca a campainha
.

O armário esteve bagunçado por tanto tempo que mesmo depois da arrumação não se nota o que ficou lá no fundo. E em geral acabamos tirando o que um dia seria útil - as más lembranças. Querendo acabar com elas para diminuir a dor, você enfia todas no saco de lixo e manda embora. Ficam as boas, essa sina.  São elas que vão se esvaindo, até revelarem os esqueletos que se abrigam lá dentro.

E eles pulam na gente do nada. Você ouve uma música, sente um cheiro, dirige sem querer para um lugar, vê uma fotografia que estava perdida nos arquivos inúteis, ouve alguma coisa, ato falho, e puft - um esqueleto pendurado no pescoço. E aí você o arrasta por dias, leva passear, alimenta, dorme segurando a mão dele (quando ele te deixa dormir), conversa com ele, até ficar com ódio mortal dele e enfiar dentro do armário de novo, lá com os outros, que já estão bem confortáveis.

Por isso não responda, não atenda nada que toque, não abra a porta. Você sabe que se abrir e tiver um esqueleto lá você vai encostar a cabeça na porta e ficar em pé na soleira, e quando encontrar as órbitas dos olhos dele todo universo vai saltar de lá, esse momento infernal do reconhecimento e da cumplicidade restabelecida. E aí, it's over.

sexta-feira, 24 de abril de 2015


Eu sei que você esperou até o último minuto e olhou para trás antes de embarcar.
Mas eu venci a mim mesma e me tornei a rainha.

terça-feira, 24 de março de 2015

Thanks, but no thanks.


Eu sei. Acreditem, por favor. Eu sei. Eu tenho pavor de parecer ingrata, porque são tantas as mãos que se estendem quando preciso, que ao me recolher, parece que estou recusando a boa vontade que tanto agradeço e preciso.

Eu sei que o inferno está pavimentado de boas intenções, mas não é o caso das boas intenções que caem no meu colo. Eu recebo boas intenções de verdade.

Passamos por coisas que, apesar de sabermos como são, como se desenrolam, têm todo um processo que todo mundo sabe que existe e ninguém queria, mas tem que acontecer.

Meu coração dói. Muito. Já aconteceu dezenas de vezes pelo mesmo motivo, e agora finalmente, chegou a hora de mudar isso. Sim, eu sei que passa. Eu sei que é difícil. Eu sei que eu não posso me isolar. Eu sei que não deveria dizer isso ou aquilo. Eu sei que não deveria fazer isso ou deveria fazer aquilo. Eu sei que não estava vendo. Mas agora eu estou.

Resolver a vida alheia é muito fácil. E aqui não está implícita nenhuma crítica. Qualquer um que olha de fora o problema de outro vê a solução porque não está enfronhado nele. Se tiver boa intenção, sugere a solução. Eu já ouvi centenas de vezes as mesmas soluções. E são as corretas. Todo mundo tem razão. Todo mundo fala com a melhor de todas as intenções porque não quer me ver sofrer.

Eu agradeço, de verdade e de todo coração, mas não adianta nada. Eu já sei. Tudinho. Eu já sei a solução, eu já sei as causas, eu já sei as consequências. E nada disso muda uma vírgula no que eu sinto. Eu não sou estúpida e não tenho mais 20 anos há muito tempo. Eu sei. Poderia estar cega em alguns momentos, mas garanto que não estou mais.

E ainda assim, a dor é a mesma. O coração não está nem aí para o que foi racionalizado, compreendido e decidido. Ele quer outra coisa. E quer agora. Como não é possível, ele devolve com a dor de cem facas cravadas por todos os lados no peito. É uma dor viscosa, pesada, intensa quanto pode ser, profunda, abissal. Nada que se diga a respeito a ameniza. pelo contrário, quanto mais eu ouço, mais facas são cravadas no peito.

Se eu não pedir seu conselho, sua opinião, seu veredito, sua sugestão, por favor não me dê. E não me chame de ingrata, não é ingratidão, eu garanto. Eu agradeço e me emociono com a preocupação com meu bem estar. Mas é pior. Me deixe com a minha dor. Eu preciso esgotar, drenar, moer o coração, deixar que se estilhace uma, duas, cem vezes. Nunca mais ele vai ser o mesmo. Nun-ca-ma-is. A escolha é minha, a dor é minha, respeite.

segunda-feira, 16 de março de 2015

É assim.

A vida é inexorável. Não dá bola pra nada, pra ninguém, não importa em que estado anda nossa alma, quantos mortos na explosão, quem nasceu morto ou morreu em vida, quantas obras-primas tenham sido escritas, pintadas, esculpidas; não interessa quem ganhou a eleição ou quem perdeu o jogo, seja ele qual for; quem conquistou o objetivo ou afundou proveniente dos píncaros; não interessa cor, renda, posição social, raça, religião, crença, cor preferida; quem ganhou o Nobel ou quem foi o maior de todos os vilões da História, conflitos locais ou incidentes internacionais. A vida não dá a mínima, ela não é territorial, preconceituosa, elitista, populista, ela não está nem aí, a gente se rasga e outro dia nasce, e a noite vem de novo e a única certeza que a vida dá é que um dia se vai, e ainda assim somos marionetes ignorantes de sua vontade, ainda assim ficamos na dúvida entre deixar ir e esperar voltar, mesmo assim afundamos ainda mais os dedos nas feridas até o sol se pôr.



quinta-feira, 12 de março de 2015

Memorabilia



* pequena nota: esse filme da foto é de 1965 e conta a história de um homem que sequestra uma mulher e a mantém refém só pelo prazer de saber que ela está lá. A capa é uma mórbida semelhança com Hannibal, mas tudo faz sentido, é só procurar - canibais, vampiros, zumbis.

Era uma vez um moço muito simpático, expansivo e gentil. Pelo menos assim parecia. Segundo ele mesmo, ele era muito inteligente, culto, abastado, conhecia as pessoas certas, havia tido sempre do melhor e tudo o que ele dizia era certo e verdadeiro. E como assim era, ninguém contestava. Ele tinha muitas, muitas coisas. Propriedades, era muito viajado e alguns itens possuía às centenas ou milhares. Por exemplo, cerca de dez mil filmes. Centenas de peças de roupas e calçados de todos os tipos. Cristais finíssimos em grande quantidade. Enxovais maravilhosos e todos os tipos de utensílios domésticos os mais modernos e as novidades todas em eletrônicos. Andou espalhando TVs por suas casas todas porque duas no mesmo cômodo não tinha graça. Livros, os clássicos, as novidades, tudo. Bebidas então nem se fala. E nesse quesito não economizava. Aliás, em nenhum.

Mas havia uma peculiaridade. Com tantas coisas maravilhosas e sem conseguir parar de comprar - quiçá porque sempre cabe mais alguma coisa no vazio - pouquíssimas coisas eram de fato usadas. Caixas se empilhavam guardando equipamentos novos. Quanto tempo seria necessário para assistir dez mil filmes? As taças empoeiravam nos armários, e formas e panelas antigas eram usadas enquanto as chiquérrimas (aliás nem mencionei que ele era ótimo cozinheiro também) ficavam guardadas lá em cima fora de alcance. Vestia-se quase sempre igual, com centenas de jeans no armário só um via a luz do dia. As bebidas - beber pra quê? Algumas comprara somente "para ter", assim, só para saber que tem, está lá à disposição. E além disso colecionava miudezas - isqueiros, posters, enfim, de tudo um pouco. E uma despensa sempre cheia, ainda que muitas coisas já começavam a embolorar.

De tanto saber tudo, ter tudo e ser o melhor em tudo, decidiu que poderia colecionar também pessoas. É, isso mesmo, pessoas, gente, seres humanos, especialmente mulheres. Chegava a gabar-se das quantidades semelhantes às dos outros itens que colecionava, tinha listas de números de telefone nas orelhas de livros, um pândego. Seu maior orgulho era essa coleção, porque, afinal, além de todo o mais, era lindo, interessante, gostoso, rico, enfim, tudo de bom. E tratava a coleção de gente de maneira um pouco inversa das outras: usava e não guardava, diferentemente dos itens que eram guardados sem serem usados.

Era uma vez uma moça que conviveu muito tempo com esse moço, fez parte da coleção dele mas ele extraordinariamente e sabe-se lá por qual motivo, porque vivia dizendo que ela não servia, entre outras amenidades, mas ele resolveu mantê-la e expô-la ao lado das outras coleções. A moça não concordou com algumas definições que ele tinha dele mesmo e perdeu-se dos outros itens. Como bom colecionador, o moço não gostava de perder itens de suas coleções, e por um longo tempo conseguiu usar a moça sem no entanto incorporá-la de volta ao pavilhão principal de exposição. A moça era muito tonta e foi-se deixando levar, com um pé dentro e outro fora do display.

Aí um dia essa história toda aí de coleção caiu na cabeça da moça como uma bigorna, e ela não foi beijada pelo príncipe mas acordou. Desejou boa sorte ao moço, juntou os colecionáveis dele que haviam insidiosamente sido instalados em sua casa, e botou o moço e suas malas na rua debaixo de um temporal.

Hoje ela está chorando muito e tem boas, maravilhosas lembranças do moço, porque ninguém é totalmente imbecil, só que acabou paciência. Um dia as lágrimas secam, as peças de coleção enferrujam, quebram, secam, ficam obsoletas, desbotam, murcham, mas os olhos que choraram as lágrimas acabam encontrando um artigo raro que não faz parte de nenhuna coleção, e aí... na curva do rio o cadáver passa.

domingo, 8 de março de 2015

Basta.



Não foi por falta de aviso. Todos, todos que se importam comigo - e não são poucos - avisaram. Uns aberta e cruamente, outros com mais sutileza, mas todos com a melhor das intenções - fazer parar o sofrimento desnecessário. Desnecessário sim, porque apesar da obviedade das coisas, quando escolhemos amenizar as cores rudes do que vemos, vamos dando uma pincelada colorida aqui, outra ali, judstificamos uma barbaridade hoje, uma atrocidade amanhã, e assim vamos, todos os dias recebendo a verdade na cara e desviando o olhar.

Às vezes em nome do que foi, do que é bom, do que pode melhorar. Mas sabemos lá no fundo que não vai. Não vai melhorar nem nunca foi bom. E só traz lágrima, tristeza, desvia a vida do caminho mais fácil, insistimos em carregar pedra, escalar pelo lado íngreme e liso, debaixo da tempestade de granizo ou arrastar correntes. Gostamos muito de arrastar correntes, malas pesadas, elefantes que não nos pertencem, asas quebradas.

Algumas vezes paramos e olhamos o panorama - não quero mais, dizemos ingenuamente. Não aguento mais, chega, não preciso disto, não quero isso, vou-me embora pra qualquer outra coisa que doa menos. Isso tudo somente para voltar a chafurdar na mesma lama em dois tempos.

Esta é minha hora de dizer basta. Não digo com empáfia, com orgulho, com ares de vitória.Digo com toda tristeza do mundo e sem nenhuma vontade. Na verdade nem digo basta, tudo se basta sozinho, porque é muito simples - não tenho mais forças para suportar. Se tivesse continuaria, mas meu suspiro final fica registrado aqui. E que eu tenha forças para começar a ajuntar os cacos da minha vida que se espalharam pelo caminho todo.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Rendição


Andei na revolta de tanto ver, ouvir e ler besteira na rede social, no noticiário da TV e ao vivo e a cores. A paciência anda curta e me manifestar em público - leia-se na rede social ou me engalfinhando com alguém não me pareceram boas ideias, e me lembrei porquê havia parado de ouvir ou ler ou assistir o noticiário, e achei que andava bastante entediada para chegar ao ponto de começar de novo. Aqui me sinto mais à vontade para as minhas próprias asneiras, uma vez que a quantidade de leitores se resume a uns dois incluindo eu mesma, portanto as possibilidades de ter respostas imbecis a perguntas que eu não fiz é bem menor. Além do mais, a soberana aqui sou eu, portanto o espaço é meu e eu escrevo o que quiser.

Eu queria vir aqui fazer mimimi a respeito de radicais em todas as áreas, especialmente a política, de pessoas que me chamam de "amiga" como se eu tivesse dado essa liberdade, de gente louca que quer minha vida - ou acha que quer, porque não tem a menor ideia de quanto custa ser eu, ou que sabe, mas é gente mais doida ainda a ponto de achar que pode me impedir de ser; a respeito do país que afunda e eu querendo deixar o barco, ou de todos os barcos em que eu entrei e estou tentando descobrir qual é o que não vai afundar, um tão cheio de buracos e remendos que parece não dar pra manter flutuando, mas que me parece ainda ser o barco salva-vidas, porque os outros já afundaram há tempos. Enfim, o mimimi todo está feito, porque eu queria escrever 100 páginas detalhando a cara de pau de todo mundo que acha que pode impor opiniões, que se acha dona da verdade e do mundo, que acha que pode mandar em mim, que acha,,,

Mas aí me deu a preguiça do século, a maior da galáxia, a infinita preguiça de quem finalmente teve a epifania do pra que mesmo? Talvez sejam os bons conselhos e boas vivências recentes da sorte de ter bons mestres, externos e internos, talvez seja só a idade mesmo, que traz o sossego da indiferença. Uma pena ter que passar por todas as tempestades que eu mesma provoco para chegar nessa calmaria que dói no corpo como quem fez exercícios físicos.

É muito estranho não se importar, apesar de não saber o quanto vai durar. Abrir mão do controle é dificílimo, mas libertador. Discutir, brigar, gritar dá muita canseira. A descarga de adrenalina deixa uma moleza ruim no corpo por uns três dias. Talvez uma altercação física, tipo umas porradas na cara ou arrancar os dentes de alguém fosse libertador, mas não é socialmente aceitável nem juridicamente recomendável. E também cansativo demais.

É tão, tão difícil abrir mão voluntariamente da intensidade. Mas o tempo agora é de paciência. É menos emocionante, mas dói muito menos. E em algum momento da vida temos de crescer.

"Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento." - Clarice Lispector