sexta-feira, 7 de março de 2014

Desafio



Eu não sou de poetar, sou de prosear. No entanto, recebi um desafio de um amigo que tenho há trinta - sim, trinta, sou sortuda mesmo - anos, meu amigo de palavras, de textos, companheiro de trabalhos de faculdade, de chacotas que nos dávamos ao luxo de fazer dos monstros literários que tivemos a honra de ter como professores, de fofocas - porque ninguém é de ferro - mas fofocas do bem, por assim dizer, fofocas no contexto literário, em um saudável ambiente de crítica construtiva, "a nível de" cara de pau da minha muito bem desenvolvida capacidade de enrolar até o mais macaco velho dos catedráticos com blablabla pseudo-pesquisado em época de não-Internet, em que tínhamos que mofar na biblioteca porque os sagrados livros não podiam sair de lá, podiam ser atropelados ao cruzarem a Praça do Relógio. Vou ter que aceitar o desafio cold turkey, nem adianta tentar enrolar, meu amigo conhece minha prosa e qualquer tentativa de enrolação resultaria infrutífera. Além disso eu não sou mulher de fugir de desafio. Aqui vai então, com perdão de quem não nasceu pra coisa.


começamos um
multiplicamos infinitamente 
formamos um de novo
começamos a ver outros uns
nos tornamos múltiplos
sem nunca abandonar o um
mas às vezes dele nos perdemos
buscamos outro um
que pode ser outro
e outro 
e outro
multiplicamos em dois
mas a busca 
ah, a busca
ela tem fim
mas 
quero o fim?
um?
ou o mundo?
o verso de um?
ou o universo?


O desafiante entendedor entenderá. E não está sozinho. Mais transparente que eu só a nascente do Rio Tietê nos idos do século passado.
E que fique registrado o perdão aos poetas. Infame, eu sei, mas eu avisei que eu proseio.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Faro


A evolução é uma grande mentira. Os homens continuam com o faro aguçadíssimo. Eu diria mais que os lobos, mais que qualquer animal selvagem. E é ainda mais bonito. A sincronicidade das atitudes dos que pensam com o chamado ancestral resulta muitas vezes em situações hilárias, mas vez por outra, o chamado visceral ainda é fascinante, ainda é de arregalar os olhos quando se presencia. Todas as coisas estão tão delicadamente interligadas que às vezes nem notamos os fios e tropeçamos neles.

Melhor ainda é enredar-se neles, é estabelecer o ídolo e vê-lo transformar-se em humano bem diante dos seus olhos, é descobrir o poder primitivo de Lilith, é aprender a separar o que é uma coisa do que é outra coisa, finalmente, finalmente, finalmente sem drama, sem sangue, sem suor, sem lágrimas, só com: tudo bem. E tudo bem de verdade. É desmistificar totalmente o ídolo e transformar-se nele, porém, sem que isso seja motivo de divulgação, porque, de novo, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. E idolatria não é coisa para se lidar no dia a dia, perde o charme.

Ainda que involuntariamente, aguardamos magnânimas. A sábia natureza já dotou os machos com o equipamento necessário para impressionar. As fêmeas precisam apenas ficar lá, sendo.