terça-feira, 16 de março de 2010

To be or not to be



"Somos sujeitos não tanto por aquilo que nos fundamenta, mas pela possibilidade de deixarmos de ser o que nos fundamenta sem nos perdermos." Nilton Bonder, in "Tirando os sapatos"

A questão fundamental que fatalmente acabamos levantando um dia é a da identidade. Desde cedo os processos de crescimento físico e psicológico incluem - aberta ou veladamente - as perguntas nossas velhas conhecidas - quem eu sou? de onde vim? para onde vou? À medida que crescemos vamos nós mesmos construindo quem somos, e descobrimos que não nascemos sendo, mas sim vamos nos tornando. Isso mostra que o processo é ele mesmo o fim, não estamos nunca prontos, hoje sou uma, amanhã outra. A língua portuguesa é muito feliz em ter dois verbos, ser e estar, para uma coisa que em outras línguas é uma coisa só, to be, por exemplo. Como se vive sem uma distinção entre ser e estar? Como transformar o processo em estanqueidade, em definitivo, acabado - sou?
Vem daí a dificuldade em definir a identidade. Quando me concluo - sou - automaticamente elimino todas as outras possibilidades. Se estou, é mais seguro, posso não estar mais, mudei de idéia.
Ser é uma prisão. Se estou furiosa com alguém, isso passa, mas se sou uma pessoa furiosa, me prendo em labirintos solitários de ódio. Se estou apaixonada, amanhã posso desapaixonar, porque isso não me define. Mas se sou apaixonada por alguém, dou a esse outro poder sobre a minha essência.
E já que falei de ódio, ele só resulta mesmo da identidade exacerbada, a radical. Eu me identifico tanto comigo mesma que não aceito o outro, em nenhuma forma da identidade dele, diversa da minha, e portanto, inválida. Só os meus fundamentos valem. Mas é tão empobrecedor...
Porém, se "estamos" nossos fundamentos: crença, opinião, escolha, manifestação, preferência; ao invés de os "sermos", abrem-se infinitas possibilidades outras, o mundo ganha horizontes por todos os lados, enxergo cores novas, descubro o outro e todos os prazeres que a alteridade proporciona. E continuo eu mesma, eu não fui a lugar nenhum, não perdi nada, nem a mim mesma, não diminuí, não tive nenhum prejuízo.
Estando acrescento o outro à minha vida e vou construindo o que É.

*O Narciso é o de Caravaggio

2 comentários:

Luci disse...

pra mim Narciso só o de Caravaggio.
e não te dá uma sensação enorme de perda? perda de tempo, perda da vontade de continuar, perda alegria que poderia ter sido...
bj

flordelis disse...

sim, Luci, é isso, eu lamento a perda de tempo alheia, porque eu sei o que está sendo perdido.