Canto VIII
"Era esse o canto do ínclito cantor. O herói se aferra ao manto púrpura com mãos enérgicas e o traz à testa, encobre a expressão do rosto: o pranto defluir dos cílios frente aos feácios o envergonhava. Quando o aedo para, rosto enxuto, recolheu o manto da cabeça, soerguendo a copa de ansas dúplices aos numes. Assim que o aedo retorna ao poema, sob aplausos de altivos feácios, extasiados com racontos, o herói volta a chorar e reencobre a testa."
Odisseia, Homero; São Paulo: Editora 34, 2012, p. 221
Ulisses venceu a guerra, arrasou Troia, é o herói cantado até por um povo que ele nem sabia que existia, em cujas terras foi parar por ter estado perdido, surrado, castigado por Poseidon. Mas e daí? O bardo o canta, todos se entusiasmam com seus feitos, ele já vinha do idílio com Calypso, mas... e daí?
Acordamos todos os dias, nos arrastamos da cama, nos arrastamos para o trabalho, nos arrastamos pela internet, pelos bares, pelas ruas, pelos copos, pelos altares, e depois voltamos para começar tudo de novo, indo para não temos a menor ideia onde.
Por que essa azáfama diária? Para que? Por que nascemos e vivemos? Porque morremos é fácil - todo mundo morre mesmo, é a única coisa certa e talvez seja essa a razão de nascer. Se acaba depois da morte ou continua é demais para um mesmo parágrafo.
Se o herói chora porque sabe o custo da vitória, o que podemos fazer nessa vida comezinha, em que, a qualquer tempo, parece que só se está andando para lugar nenhum? A nostalgia de tempos não vividos e a ânsia por outros que viriam não resolve nada. A humanidade sempre sofreu, sempre trabalhou, sempre foi uma batalha não épica estar no planeta. Quando foi fácil? Quando vai ser? Respostas fáceis e idênticas.
É um consolo ser difícil para todo mundo? Não. Cada um tem que arrastar sua carga, e a do outro ser mais leve ou pesada para mim - na prática mesmo, sem laivos altruístas - não muda nada. E outro lado desta mesma moeda - o canto que tanto divertia e alegrava os faécios só causou dor ao convidado, o que havia de fato vivido o que estava sendo cantado. Dá o que pensar. Será que o que vemos todos os dias da vida alheia que sorri, posa, alardeia, é de fato a alegria da vitória de Ulisses? Que alegria, cara pálida? Parem de cantar isso, o convidado só chora! E que raiva dos ciclopes que não fazem absolutamente nada e recebem tudo de graça dos deuses. Será que tem disso hoje? Muitas vezes parece que sim, mas nem o ciclope escapou de ser enganado... e nem era tudo assim tão maravilhoso para Polifemo - ele tinha que cuidar das ovelhas, fazer o queijo... Nem tudo são checkins em aeroporto (ou nos portos do Mediterrâneo). E tem muita ilhota querendo ser a ilha de Calypso e buraco dizendo ser a caverna de Polifemo.
Ulisses fez uma viagem penosa de volta para casa. Perdeu-se, virou brinquedo nas mãos de Poseidon, pranteou suas perdas, mas sua viagem foi também de maravilhas, sobrenatural, povoada com criaturas fantásticas, lindas, monstros, amantes. Esperto, conseguiu ouvir o canto das sereias sem que elas o arrastassem, porque sabia que sozinho, humano (Andra) apesar de herói, não conseguiria resistir, e tomou as devidas providências. E com suas artimanhas acabou conseguindo chegar. A dor de viver tem seu preço. Mas... e daí? Há que se continuar, arrastando os dias, e com sorte, gostar deles de vez em quando, e sem sorte, inserindo uns símiles homéricos para aliviar.
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