sábado, 7 de março de 2020

Meditações online



Ele está dizendo: Parem de falar besteira. 
"Do meu preceptor: o não ter pertencido à facção nem dos Verdes, nem dos Azuis, nem partidário dos Grandes-Escudos, nem dos Pequenos-Escudos, o suportar as fatigas e ter poucas necessidades; o trabalho com esforço pessoal e a abstenção de excessivas tarefas, e a desfavorável acolhida à calúnia"
Marcus Aurelius, Meditações, Livro 1, 5.

Marco Aurélio, apesar de ter sido imperador da grande potência da época, consegiu, estoica e literalmente, manter a sanidade. Talvez porque não havia redes sociais no Império Romano.

Hoje essas sábias palavras soam simplesmente como ficção, utopia, ou "só rindo mesmo".

Não tomar um partido e ser "isentão" hoje "é pecado". Ou ame o que eu amo ou vou te atacar com pedras e paus verbais, porque uma coisa que ficou fácil foi a valentia à distância. De onde se espera o óbvio, não há o que reclamar, é como o programa de televisão ofensivo, chato ou imbecil - desligue a TV, aperte o botão "unfollow" ou similar e siga a vida. Mas há aqueles que, no nosso histórico offline, foram amigos, parceiros, pareciam nos amar, querer estar conosco, independente de lados escolhidos (ou nem escolhidos). Esses são os difíceis de apagar virtualmente. Naturalmente é muito fácil sair de todas as redes sociais, mas o custo-benefício ainda está pendendo para ficar.

Para quem nasceu e viveu grande parte da vida sem elas, seria até mais fácil simplesmente ignorar tudo, mas quem quer usa para aprendizado e para contatos que não teria se não fossem as famigeradas. Difícil é lidar com as personas online que diferem tanto das pessoas em carne e osso.

E a "desfavorável acolhida à calúnia"? Essa se encaixa no "só rindo mesmo". Não é o bullying online que dói, são as observações pontudas e ctucantes de quem amamos um dia. A amiga de anos, o primo com quem brincamos na infância, a tia, o amigo que segurou nossa mão no mundo real, de repente viram tiranossauros rex, avançam, dentuços, na nossa liberdade de pensamento.

Sempre houve quem pensasse diferente, obviamente, mas hoje ficou possível usar isso como holofote. O "suportar fadigas e ter poucas necessidades" é impraticável. Somos bombardeados com anúncios de coisas que não sabíamos que precisávamos, com notícias que não sabemos se são reais, com um eterno sou lindo(a), tenho 14652536435 seguidores que me assistem tomar café (ou coisas inenarráveis em um blogue de respeito), sou rico(a), viajo pelo mundo, meu trabalho é maravilhoso, enfim, essas coisas.

Abstenção de excessivas tarefas? De que jeito? Especialmente as mulheres que já por natureza são multitarefa, se não forem boas mães, profissionais, companheiras, lindas, malhadas, ah que fracasso. E ouse criticar os exageros do dito "feminismo". Ai, minha paciência.

Só sobrou o "trabalho com esforço pessoal". Esse é insubstituível, a gente se arrasta para ir vivendo - quando consegue, porque às vezes é difícil até arrastar. Resta o esforço pessoal para estar no mundo, cercado de pessoas, reais ou virtuais, a maior batalha desde a conquista dos partos, e ainda com o ônus de ter levado a peste (hoje, por ironia, quase literal).

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