"Ao olhar o outro, medimo-nos. A imagem nos trai diante do delírio das formas caleidoscópicas que causam uma espécie de desconforto ao nos fazer perceber a volátil matéria que preenche a moldura de carne. E dizemos interiormente: o outro também sou eu." Maurício de Oliveira, coréografo.
Fui assistir ao espetáculo de dança da São Paulo Companhia de Dança, "Os Duplos". Além do talento dos bailarinos, a criação do coreógrafo é fascinante. os bailarinos como que se multiplicam no espaço, e vemos isso com os movimentos deles e com uns em relação aos outros. E há no palco telas transparentes e paineis, que vão reforçando as relações, ao mesmo tempo e que as deixam com jeito de etéreas, ambíguas. Os duplos referem-se aos bailarinos entre si e consigo mesmos, e à relação entre eles. A beleza e leveza dos movimentos e das imagens que as telas criam me trouxe ideias da complexidade de nossa relação com o outro, independente dos outros que temos em nossas vidas.
O que tenho presenciado e vivido tem sido extremamente decepcionante. Pouquíssimos dos meus outros me trazem alegrias.
Às vezes quando leio algum texto em alguma obra antiga, fico fascinada com a noção de "palavra" em um universo onde não havia promessas sacramentadas em contratos, compromissos, obrigações, com assinaturas, reconhecimento de firma e autenticação, quando bastava-se dizer e estava dito, sim era sim, não era não. O mundo seria bem menos complicado se o que saísse de nossa boca fosse o que nasceu no cérebro ou no coração. Se digo que faço, faço, se digo que é assim, é assim, não de outro jeito. Não há mentiras, subterfúgios, concatenações, armações, planos. Só o que estou dizendo mesmo.
Ao ver os bailarinos dançando em par e atrás da tela transparente seus duplos reproduzindo seus movimentos, senti como, principalmente em relacionamentos a dois, vamos dançando no palco principal e lá ao fundo vai acontecendo outra coreografia, aparentemente muito semelhante, mas com diferenças sutis. Vamos desfilando nossos movimentos que vão dizendo - sou isso, espero isso, quero isso, gosto disso, faço assim, mas lá ao fundo outra história vai acontecendo, e vamos, nós e nossas almas, cada um para um lado. Independente da perspectiva por onde se olhe, não existe comunicação verdadeira entre duas pessoas, pelo menos não verbal. As palavras acabam arruinando em vez de servirem de ponte de alma para alma.
O que eu digo chega aos ouvidos outros distorcido, passando sabe-se lá por que canais que distorcem meu pensamento, minha voz, meu tom. E quando chega ao outro lado passa por outros filtros que condenam o que saiu da minha boca a chegar transformado muitas vezes no total oposto.
Isso quando o outro digna-se a ouvir, porque o que tenho visto são portas fechadas, ouvidos cerrados, assuntos encerrados, sem opções de caminhos. Falta tempo. Falta disposição. Falta vontade.
As pessoas talvez tenham se cansado de ouvir, ou talvez esteja fora de moda dizer não, então fingem que ouvem e concordam, preferem disfarçar, maquiar, enfeitar. Ou talvez sintam-se pressionadas, forçadas a compromissos que não queiram, só porque conversar, trocar com o outro, pode ser comprometedor, dá trabalho, porque temos que crescer, nos esforçarmos, sermos adultos e nos doarmos ao outro. E recebermos dele o que pode vir a nos trazer alegrias inusitadas para as quais não temos tempo e não estamos preparados. Eu sou tão limitado, que se der um pouco de mim, me consumo.
Eu que trabalho com a palavra lamento tanto que ela tenha perdido o valor em todos os sentidos. E sem ela para servir de fundamento até outros tipos de comunicação saem perdendo. E todos nós perdemos. Estou profundamente triste porque hoje perdi mais um pouco da minha fé na humanidade como atributo. Porque a palavra, que é um privilégio humano, está nos afastando.
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